terça-feira, 18 de agosto de 2020

Racismo e pandemia

RACISMO E PANDEMIA

 

            A PANDEMIA da COVID 19 trouxe inúmeros dramas para a sociedade. Ela demonstrou de maneira incontroversa  que cada vez mais é imprescindível  investimento na educação, na saúde pública, em políticas que visem levar  a todos a assistência ampla e necessária em qualquer momento.

            Numa análise rápida, podemos dizer que ela “escancarou” além das mazelas da sociedade, o que muitos ainda insistem em negar: o racismo está presente entre nós.  Não somos e jamais fomos uma “democracia racial”, não somos esse povo amistoso, alegre e acolhedor. Basta olhar as notícias estampadas quase que diariamente na mídia.

            Por isso, sempre tão importante e atual, debater o tema. E isso não é  vitimização de um povo, viver no passado ou  queixas que podem cair no vazio de uma conversa superficial. É importante aprofundar o  debate, reconhecer, por mais doloroso que seja- que o racismo está  presente em nossos dias, e que a cor da pele, situação socioeconômica, a escolarização/remuneração, interferem diretamente na qualidade de vida, no acesso a tratamento de saúde e moradia dignas, saneamento básico e porque não dizer, sobrevivência.

             Nesse texto, pretendo falar de Racismo e saúde. Assim, à guisa de alinhavar ideias, penso ser importante ainda mais uma vez definir o que é racismo, as implicações jurídicas, pessoais e sociais desse fato lastimável.

            Racismo, de acordo com o dicionário online de Língua Portuguesa é o preconceito e discriminação direcionados a quem possui uma raça ou etnia diferente, geralmente se refere à segregação racial, trata-se de um comportamento hostil dirigido a pessoas, grupos sociais, etnias e/ou raças, tentando estabelecer a exaltação de uma raça em detrimento das demais.

            Ele é um fenômeno presente em diversas sociedades contemporâneas, e é um ato violento que causa sofrimento, mal-estar, perda da autoestima, e adoecimento. Isso porque, apesar do brasileiro ser de origem pluriétnica, plurirracial, mestiça e inegavelmente de maioria negra, ainda ocorre nesse território o tratamento diferenciado para brancos e negros e a prática do racismo torna-se uma constante.  Ser branco, no modelo vigente em nossa sociedade é ter acesso a melhores empregos, melhores salários, condições de vida. Desde muito cedo negras e negros percebem essa diferença.  A criança negra nasce com essa marca indelével, assim, é como se existisse uma idealização da branquitude. Ela é criticada por seu cabelo crespo, a cor da sua pele, seu nariz; ela acaba introjetando uma noção de que ser negro é ser inferior, é ser feio, portanto, o trauma da discriminação torna-se presença constante na sua vida e ela começa a acreditar que isso é verdade, é real. E ela cresce acreditando que  é incapaz e não merece um lugar de destaque. Essa ideia acompanha e persegue negros e negras por toda uma vida.

            E basta prestarmos atenção no que escutamos, nos dizeres do nosso povo e comprovarmos  que o racismo está presente em praticamente tudo. Ele está presente quando alguém fala em “humor negro”, “serviço de preto”, “sexta-feira negra”, “feito nas coxas”,” “ a coisa tá preta”, “mulata”, “cor do pecado”, “ samba do crioulo doido”, “nega maluca”, todas de caráter pejorativo e nem nos damos conta disso, porque naturalizamos e negamos a dor e o sofrimento do outro. Ou seja, o que é negro e preto é inferior é negativo. Já pararam para pensar que a cor do luto, da tristeza é o preto? Que o branco é colocado como a cor da pureza, da candura, dos anjos?

            Quando você quer explicar, tornar as ideias mais assimiláveis você diz que vai esclarecer, clarear as ideias, a fala. Se as coisas estão confusas, estão nebulosas. Até quando falamos de condições climáticas, se o tempo fechou, tornou-se pesado ele escureceu. E insisto, não nos damos conta disso.

            O racismo está presente nas instituições, no esporte, na cultura.

            A Constituição Federal define que o racismo é crime inafiançável, nos termos Inciso XLII do artigo 5º: “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”.

            Além do que diz nossa Lei Maior, temos a LEI Nº 7.716, de 05/01/1989 que define os crimes resultantes de preconceito de raça e cor. Essa Lei é conhecida como Lei Caó- apelido do autor do projeto, o advogado e jornalista baiano Carlos Alberto Oliveira, o Caó, deputado federal do Rio de Janeiro, morto em fevereiro de 2018.

            Decorridos tantos anos da promulgação da Constituição e do advento da Lei contra os crimes de racismo e injúria, muitos ainda continuam perpetrando atos racistas. 

            E a pergunta que não quer e nem pode calar é: por que isso persiste em nossa sociedade?

            -  Porque existem pessoas que acreditam que são seres superiores, que a cor da pele as distingue e que por isso podem ferir, magoar, insultar, ofender e desmerecer o outro que eles consideram inferior porque sua pele é preta.

            As crenças racistas permanecem em nossa sociedade, elas não recuaram apesar de toda a educação que hoje as pessoas têm, do conhecimento da Lei e suas imposições.

            É importante dizer que toda relação para se perfazer, precisa ser dialógica. É importante eu reconhecer que aquele Outro que está diante de mim merece o meu respeito, acolhida, merece ser ouvido e reconhecido como um igual.

            E  a pandemia? Qual a situação dos negros nessa conjuntura?

            Ela desvelou que ainda existem pessoas que não têm acesso a saneamento básico-rede de esgoto e água potável- portanto, não têm como cuidar da higiene das mãos e do corpo.

            Não têm como fazer  isolamento social, pois moram em casas pequenas, multifamiliares, sem recursos que lhes garanta o cuidado com a saúde e o bem-estar.

            E como higienizar usando álcool em gel se elas sequer têm dinheiro para comprar o necessário alimento?

            E as crianças? Elas não têm acesso a aulas remotas pois muitas  não possuem computadores, e/ou acesso à internet banda larga. Ou seja, a exclusão está estampada mais uma vez. Creches e escolas estão fechadas e trabalhadoras que não têm um núcleo de apoio, não têm onde deixar seus filhos.

            E falando do acesso à saúde, as estatísticas são assustadoras:

            Segundo dados do   Ministério da Saúde 1, atualmente, 80% da população que só tem o SUS como plano de saúde é negra. Segundo a Pesquisa Nacional de Saúde (2015), das pessoas que já se sentiram discriminadas nos serviços, por médicos ou outros profissionais de saúde, 13,6% destacam o viés racial da discriminação. Se essas pessoas  só têm  acesso ao SUS, sabemos que ficarão à mercê do surgimento de vagas, de leitos de enfermaria e até mesmo leitos de UTI, ou seja, o tempo de espera pode ser ainda mais fatal em uma situação como a que vivemos agora com a pandemia da COVID.

            Há alguns anos, foi divulgada uma pesquisa feita pelo Instituto Data Popular, em parceria com o Fundo Baobá. Ela apontou que 15,2% dos negros têm plano de saúde, contra 31,3%, dos brancos.

            O site da ABRASCO2, em pesquisa realizada no mês de abril deste ano, indica que      o Ministério da Saúde já havia apontado altas taxas de mortalidade por COVID-19 entre os negros, uma categoria que inclui pessoas que se identificam como “pretas” e “pardas” no censo demográfico. As autoridades do município de São Paulo também anunciaram que as taxas de mortalidade entre os pacientes com COVID-19 eram mais altas entre os negros. Dados coletados no mês de maio por pesquisadores independentes para mais de 5.500 municípios mostram que 55% dos pacientes negros, hospitalizados com COVID-19 em estado grave, morreram em comparação com 34% dos pacientes brancos.

(A íntegra desse matéria pode ser acessada no link ao final desse texto.)

            E esses dados só passaram a ser compilados a partir do mês de abril por força da  pressão da Coalizão Negra por Direitos, um grupo de 150 entidades que,  enviou uma carta ao Ministério da Saúde e às secretarias de saúde de todos os estados pedindo a divulgação da cor, do gênero e dos bairro dos infectados. Portanto se não fosse por iniciativa de grupos organizados, nem saberíamos a situação de negros e negras durante a pandemia no nosso país. Ou seja, mais uma vez, seriam inviabilizados.

            A revista Galileu traz mais um dado alarmante: uma análise da Agência Pública mostrou que há uma morte para cada três brasileiros negros hospitalizados por Covid-19, enquanto entre brancos a proporção é de uma morte a cada 4,4 internações.

            Concluindo, não há como negar, negros continuam sendo massacrados, assassinados e colocados à margem de todos os benefícios.

             As mudanças são urgentes e necessárias. Não dá mais para continuarmos abrindo as páginas dos jornais e nos deparamos com a notícia de que mais um jovem negro foi assassinado, que uma criança negra foi abandonada num elevador e, morreu, que uma menina negra foi estuprada. Uma mulher negra foi maltratada num consultório médico.

            O Brasil precisa entender que todos têm os mesmos direitos.

            Quero citar a grande filósofa Sueli Carneiro:

            “O racismo é um sistema de dominação, exploração e exclusão que exige a resistência sistemática dos grupos por ele oprimidos, e a organização política é essencial para esse enfrentamento.”

 

 

 

 

 

Links:

1-https://www.canalsaude.fiocruz.br/noticias/noticiaAberta/negros-tem-maior-incidencia-de-problemas-de-saude-evitaveis-no-brasil-alerta-onu-2018-02-01#

2-https://www.abrasco.org.br/site/gtracismoesaude/2020/07/20/por-que-a-covid-19-e-mais-mortal-para-a-populacao-negra-artigo-de-edna-araujo-e-kia-caldwell/).

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