quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Do outro mundo

Fantasmas existem ? E alma do outro mundo? Será que alguém pode ver gente que já se foi? 
Não sei se é verdade, se fantasia ou fruto da imaginação de uma criança, se é história que o povo vem contando e aumentando com o passar do tempo,  mas o certo é que fiquei sabendo do "causo" por gente de confiança, daquele tipo que não inventa, não comenta e de tudo suspeita. Mais ainda, a pessoa que contou o causo, afirma que é verdade verdadeira. Vou contar também,  do jeitinho que ela me contou  há muito tempo. Se omitir alguma coisa é porque a passagem dos anos cobra seu preço, e a memória não é mais fiel aos fatos. Posso até deixar de contar algum detalhe importante, mas podem  crer que eu também não estou aumentando nada no conto. Nem um pontinho, mesmo porque, a amiga que me contou é pessoa de respeito. Senhora de cabelos brancos, avó de muitos netos. Ela me segredou que conheceu uma menina que  era bem diferente.Uma estranha. Não gostava das brincadeiras de criança, vivia perto dos adultos, ouvindo, aprendendo, observando. Quase não saía de casa,  só falava quando alguém mais velho autorizava, era ajuizada, prendada e extremamente religiosa. Sempre que acontecia alguma coisa, ela falava: é a vontade de Deus. Minha mãe  me ensinou isso. E ao  ao falar,  se benzia.  Estranhavam o fato de alguém tão jovem ser  tão sensata, tão resignada e aparentar  tanta fé.  Ficara órfã muito cedo. O pai aparecera com uma  febre forte ao voltar da lavoura. Deitou  para não mais levantar,  e poucos dias depois morria, deixando  muitos filhos e uma viúva. Não deixou nada além daquele pedaço de terra. Nenhum recurso que garantisse o sustento de família tão numerosa. Eram paupérrimos.
 A menina mais velha foi levada para a casa daqueles parentes distantes. Precisava trabalhar para ajudar no sustento da família e, naquele lugar tão  carente de recursos, não havia onde ela conseguir algum dinheiro. Portanto, a pedido da mãe,  foi recebida na casa dos parentes abastados. Seria tipo uma cria da casa, porém, em troca de um pequeno salário, uma ajuda para a mãe,que ela enviaria no final  de cada  mês. E ainda teria  cama para dormir, alguma roupa, mesmo que fosse usada.
De repente ela se viu longe de casa, numa cidade que nem sonhava existir.  Nunca havia calçado sapatos, jamais viajara, não sabia ler, tudo o que sabia era cuidar dos afazeres da casa,  da horta, das criações, e dos irmãos. Seu dia começava bem cedo e pouco descansava.  Só à noite, quando se recolhia em sua rede podia sonhar acordada. Sua vida, desde muito cedo sempre fora:  Em primeiro lugar sempre,  as obrigações. O resto vinha depois, se sobrasse tempo.
A primeira vez que viu a cidade grande, ficou muito assustada. Quantos carros, quanto movimento. Dava medo atravessar as ruas tão movimentadas. E a casa dos parentes então? Aquilo não era  só uma casa. Era um palácio. Muito  maior do que a  a maior e melhor de todas as casas  do seu torrão natal. Mais ainda,a  sua casinha lá no interior era de chão batido, aquela ali era um luxo só, cheia de vidros, enfeites, coisas que brilhavam como  ela nunca tinha visto. E o automóvel?  que "belezura". Dava gosto escutar a buzina, passar a mão pelos bancos macios. Colocaram-na num quartinho dos fundos, ao lado da cozinha, mas , para ela, era um verdadeiro paraíso: tinha cama com colchão e lençol, um armarinho onde podia guardar seus poucos pertences, um  espelho(na sua casa não havia nenhum) e cortina florida na janela. A dona da casa, aquela que era parente distante, já foi logo falando que  partir daquele dia,  ela ficaria por conta da criança, um meninozinho dos seus três anos, birrento e chorão. Estranhou o fato de não ter de cuidar da horta, da cozinha, da arrumação da casa. Contaram que aquilo era tarefa para os outros  empregados. Bastava ela cuidar do menino. Se fosse boa para o menino, a patroa ficaria satisfeita. Se ele reclamasse de qualquer coisa, nem precisava achar que por ser parente, mesmo distante, a madame perdoaria.  Mas eu posso ajudar,  dizia sempre, não custa nada.  Na minha casa eu olhava todos os meninos e dava conta. Assim, quando o menino dormia, ela se dispunha a fazer outras coisas: Ajudava na cozinha, limpava os banheiros, espanava. Nenhum trabalho era pesado para ela. E ainda ficava agradecida. Ali  havia muita fartura, o povo era sempre muito bom. Nem parecia que ela era uma parente pobre vinda do interior.
E a dona da casa, a mulher "chique" que todos chamavam de madame, parecia saída daquelas revistas que de vez em quando ela via espalhadas pela casa. Vivia nos trinques, cheia de joias e de salto alto. Mas também, até  ela, caipira vinda da roça, já estava  parecendo  gente rica, com toda aquela roupa  no armário, aquele sapato que apertava seus pés, mas que era bonito feito ele só. E as fitas coloridas para amarrar no cabelo? E o melhor de tudo era saber que o que ganhava  era o suficiente para ajudar  a mãe a alimentar e vestir seus irmãos. Imaginem quando a mãe visse aquilo tudo. Ia achar que ela era uma princesa. Ah, a mãe....Sentia tanta saudade, ficava lembrando dela, sentada na máquina de costura, a filharada toda ao redor. A saudade doía muito,  mas, sabia que ainda não podia voltar. Um dia talvez, quando os irmãos crescessem e todos pudessem trabalhar. Sabia que agora   era uma boca a menos para a mãe sustentar. E se consolava  contando o tempo,  esperando a chegada do Natal. A madame dissera que nesta data, alguém poderia levá-la lá na roça. Iria rever a mãe, abraçar seus irmãos, visitar velhos conhecidos.  Só essa esperança  já era um alento. Levaria um montão de presentes, e muitos doces para os irmãos.
Seu único passeio era  frequentar a igreja que ficava em frente à casa. Gostava de ver os santos, ajoelhar-se próximo ao altar. Ia  à missa todos os domingos, já fizera amizade com o padre, ajudava na limpeza da igreja, ajudava após a missa  do domingo. E todos os dias repetia o mesmo ritual:   ia  à sacristia para pedir a bênção. Saia dali feliz e sentindo-se protegida.
Numa tarde  de quinta-feira, após o menino dormir, como de costume, ela foi para a igreja. Aproximou-se dos santos, fez suas orações. Àquela hora, sabia que o padre estaria na sacristia,  cumprindo seus afazeres. Depois que conversasse com os santos, iria lá. O velho padre sempre falava as mesmas coisas: perguntava pela mãe, pela saúde de todos, falava para ela continuar sendo uma boa menina. Depois dava a sua bênção e voltava para suas obrigações. Assim pensando, ela levantou os olhos para o altar. Estranhou não ter visto logo ao entrar,  aquele padre  que celebrava missa para a igreja vazia. Teve a impressão que já o tinha visto em algum lugar, mas onde? Nunca fui a lugar nenhum. É da casa para a igreja e da igreja para a casa.  Eu hem, pensou, nunca vi missa a esta hora. Que padre diferente, e que roupas estranhas. Vou até o padre João pedir sua bênção e vou logo embora. Esquisito um  padre rezar missa para ninguém. Se bem pensou, melhor fez. Encaminhou-se para a sacristia e lá encontrou o velho pároco, debruçado sobre alguns papeis . Padre, a sua bênção, e beijou as mãos que o sacerdote lhe oferecia. Mas a necessidade de falar era maior do que o temor da reação do velho padre. Então,  ela foi logo perguntando quem era o padre que estava celebrando missa para ninguém. Que é isto menina, deu para inventar histórias?. O único padre aqui sou eu, e se  eu estou aqui na sacristia, está claro que não poderia estar lá celebrando missa, ainda mais neste horário. Que ideia estranha, menina, de onde você tirou isto? e como pode pensar que eu vou acreditar em tamanha besteira. Padre, minha mãe me ensinou a nunca mentir, principalmente para o padre, porque é pecado. Se o senhor está duvidando, vamos lá até o altar que o senhor vai ver. Agora a missa já deve tá quase acabando. Pois sim , disse o padre, vou mesmo e você vai se arrepender de ficar aí inventando histórias. Quando chegaram, o padre já estava tirando os paramentos. Sorriu e levantou as mãos num gesto de bênção. Padre João caiu de joelhos, olhos cheios d'água. Obrigou a menina a ajoelhar-se também. O outro padre saiu naquele momento, desceu do altar e desapareceu instantaneamente pela porta dos fundos. Viu que eu não estava mentindo padre, mas por que é que ele não disse nada?  por que é que ele saiu pela porta dos fundos  e não foi para a sacristia?  Eu poderia ajudá-lo a  guardar as coisas como sempre faço para o senhor. Ele ficou chateado porque eu não fiquei para ver a missa?
 Padre João, agora  em prantos disse:  Menina, aquele  era o padre Sabino, o primeiro padre desta igreja. Você já viu o retrato dele lá na sacristia.  Eu não tenho nada para explicar  para você. Eu também não entendi o que aconteceu. Acho que estávamos sonhando. Deve ser o calor.  Vamos até a sacristia e você vai me prometer que não vai contar isso para ninguém. As pessoas vão pensar que nós somos dois loucos. Ninguém vai acreditar nesta história.  A menina seguiu-o , afinal, para ela  qualquer coisa que o padre determinasse era uma ordem e estava acostumada a obedecer. Quando chegaram,  sobre a mesa de trabalho, havia um retrato antigo, amarelado pelo tempo. Olha,  padre, era ele mesmo. Tá igualzinho.
Isso mesmo, era o padre Sabino. Ele nos deixou há mais de 20 anos e está enterrado nos fundos da igreja. A menina não podia acreditar no que ouvia. Se não fosse o padre João, pessoa tão séria e de respeito que estava falando aquelas coisas, jamais acreditaria. Não acreditava em fantasmas e nem em alma de outro mundo. As pessoas boas quando morriam iam direto para o céu. Ainda mais um padre que já era santo na terra. Que ideia !!. Será que o padre João estava caducando? Ela vira com os próprios olhos o padre celebrando a missa. Viu quando ele desapareceu pela porta dos fundos. Era de carne e osso, tinha certeza. Mesmo ele não tendo conversado com os dois ela ouviu um pouquinho da missa. Não entendera nada pois estava sendo celebrada numa língua que ela nunca tinha ouvido, e o padre João explicou que aquilo era Latim, mas,  agora, falar que ele era um fantasma,  pessoa que já morreu, isso era demais até para ela. Que coisa! Será que eles dois tinham sonhado o mesmo sonho? Será que a saudade da mãe fez com que ela ficasse de miolo mole? mas e o padre? Ele também tinha visto. Que negócio esquisito de falar de gente falecida. Logo o padre, pessoa tão séria.
Beijou as mãos do velho padre e saiu correndo da igreja. Precisava contar aquilo para a tia velha da madame, a pessoa mais entendida e culta que ela já havia conhecido.E não estaria traindo nenhum segredo, apenas queria entender o acontecido . E se ela pedisse,  tinha certeza que o assunto morreria ali. A tia era de pouca conversa.
O certo é que de alguma maneira  esta história é contada ainda hoje, e, há mais de cinquenta anos as pessoas da família juram que é a mais pura verdade.



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