quinta-feira, 1 de outubro de 2015

   ZÉ, O COVEIRO

     O povo das Gerais tem causos que são  interessantes, surpreendentes. Parecem vindos dos contos de fadas, das lendas e mitos, das histórias e da memória.  Certo é  que alguns são  tão incríveis,  que dariam um  filme, uma peça de teatro, um livro ... Melhor ainda,  são muitas vezes contados com a graça e a oralidade tão típicas do nosso povo. Uma linguagem cantada, cheia de metáforas e figuras que nos remetem a imagens especiais, a  cidades fincadas  entre montanhas e rios que serpenteiam abrindo caminhos. E não ha melhores  contadores  de histórias que nossos avós. Causos contados  à beira do fogão de lenha, acompanhados de um  cafezinho coado, adoçado com pedaços de rapadura, acompanhados de broa de fubá e  biscoito de polvilho .  Enquanto a fumaça sobe,  a mente voa, a  conversa flui e o  tempo passa. Lentamente. E nesse fio de palavras, no tecer de cada causo, vamos  fincando  raízes, aprendendo e apreciando mais e mais.
     E foi num desses momentos que ouvi um causo, regado a café e biscoito de polvilho. Ele foi contado por um velho  amigo,  o mais inventivo contador de histórias que  conheci. Sentado num banquinho tosco,  enrolando seu cigarrinho de palha,  decidiu dar um dedinho de prosa. Falou que  era "tudinho real, verdade verdadeira", ele não tava aumentando uma virgulazinha sequer . Cruzava os dedos e jurava: é a mais pura expressão da verdade. Não tinha presenciado o ocorrido, mas um amigo seu, pessoa séria e da maior confiança e respeito tinha acompanhado tudo. Aliás, ouvido a barulhada que aconteceu lá pelas bandas do cemitério.   
    Acho difícil isso ter realmente acontecido. Pode ser até que houve alguma coisa, mas, da maneira que ele contava,  sou mais  para acreditar naquele velho ditado: quem conta um conto aumenta um ponto. E coloca pontos nisso.
     Bom, foi mais ou menos assim:
    Há alguns anos, quando ainda não existia televisão e  a  Maria Fumaça  cortava as estradas das  Gerais,   numa cidadezinha lá do Cabrobó do Judas,  morava  um coveiro  chamado Zé. Sujeito esquisito, pouco chegado ao convívio com o povo do lugar. Ninguém sabia  se ele tinha  família, de onde tinha vindo. Apareceu ali e foi ficando.   O que os mais velhos contavam  é que por muito tempo ele perambulou pela cidade,  oferecendo seus serviços. Capinava, limpava, varria. Fazia  qualquer coisa em troca de um prato de comida,  de um cantinho para  dormir. Com o tempo  as pessoas se acostumaram com sua presença quase silenciosa,  sua humildade. Só uma coisa incomodava alguns: ele amava uma branquinha.E quando bebia, dava para falar umas besteiras . Algumas ninguém entendia. É um  sábio, diziam os "filósofos " de botequim.E o Zé, alheio aos comentários, bebia mais uma branquinha e dizia:
  - Prefiro viver com os que já se foi  . Difunto se levanta, tem licença de Nosso Sinhô  Jesus Cristo. Louvado seja em sua Glória (e se benzia);  Dos que foi,  eu nunca mais tive notícia. Se tem alguma coisa do lado de lá, ninguém até hoje voltou pra contar. E se eu nunca vi, num adianta nada esse povo ficar ai falando de alma d'outro  mundo,  que isso num  me assombra. Com difunto morto eu é que num quero conversa. Num  quero pobrema  com quem partiu pros lado de lá.  Num sei o que acontece ... Se é que esse negócio de vida eterna existe mesmo... Bom, isso é conversa do seu padre e dos tais de "isprita ". E tanto falou, tanto resmungou que arranjaram para ele o cargo de ajudante do coveiro. O titular da função já estava velhinho mesmo, e no cemitério, o Zé podia beber à vontade que não ia incomodar ninguém. Feito isso,  Zé mudou com suas tralhas para o cemitério. Era pouca coisa. Uma foice e uma enxada, uma trouxa de roupa, um caneco e um prato de lata. A partir daquele  dia, ele passou a ser quase o senhor  absoluto daqueles domínios:  capinava, cuidava do jardim, plantava seus legumes e verduras. Sim, legumes e verduras que ele usava para seu  sustento e quando sobrava alguma coisa, doava para quem quisesse.  Como ele mesmo gostava de dizer, terra é terra,  e é tudo igual em tudo quanto é lugá. O outro coveiro- o velho-  não tinha ninguém. Dizia sempre que sua família era o povo da cidade. E já que o Zé estava ali, que ainda era novo e forte, que  tomasse conta de tudo. Ele já tinha trabalhado demais. Só estava  esperando a hora de acertar as contas com o Padre Eterno. Quando a Dona da Foice aparecer, tou pronto!
     Um dia, a cidade amanheceu com a notícia da morte do  velho coveiro. Foi o Zé quem foi lá na Prefeitura avisar: o  velho  amanheceu mortinho da Silva. Ocês vai lá pra ver o que tem de fazê.  Se fosse só por minha conta,  eu já tinha tacado ele num buraco, mais ocêis que diz que é a família dele que trata de  tomá as providência. Chama lá seu Padre pra fazer as oração.
    Enterrado o defunto, o prefeito deu a ordem: a partir de hoje o Zé é o coveiro oficial. E fala para ele que vai ter um aumentinho de salário!
   - Vai ter mais dinheiro? Tá mior que a incumenda..... Trabaiá  sem ninguém pra azucriná.Só eu e eles?  Esses patrão vai sê  dos bão mesmo. É muita felicidade!
     Tanta felicidade que o Zé passou a ter ainda mais capricho: Plantou buganvílias  e quaresmeiras, roseiras, gardênias e jasmim. Do amanhecer ao pôr do sol ele trabalhava sem parar. O cemitério ficou uma beleza só. Ele quase não saía dali, e quando saía, era só para muita necessidade: comprar o de comer e uma cachacinha, companheira  inseparável.
   Num certo dia, apareceu por lá  o encarregado da Prefeitura. Vinha cheio de dedos, misturando esses e erres, trazendo ordem especial do Prefeito: 
    - Escuta aqui,   senhor José. Hoje darás  uma geral  no Cemitério Municipal. Vai ser enterrado um filho ilustre da cidade, um cidadão honorável, pessoa da mais elevada consideração e estirpe. Ele vem ter sua última morada ao  lado dos pais. Quero tudo no maior capricho! Tá vendo aquele túmulo mais bonito. É ao lado dele que você vai cavar para enterrar o doutor.
     - Uai, e o que é que ele tem de mais importante que os outro que tão enterrado aqui ? Num vai tudo pra debaixo da terra mesmo? Aqui até os mais  importante come capim....
     - Pois  esse merece  tratamento especial. Precisa  ser com toda "Pompa e Circunstância". A família vem trazendo o falecido lá da Capital,  para cumprir o  último desejo . E você vai ficar aqui esperando, vai dar toda a atenção. Tratamento de primeiro mundo, se é que você me entende.
     - Mas que vô ficar , vô mesmo. Eu quase nunca saio daqui . Num precisava nem de avisá. E esse negócio de primeiro mundo é quando as  pessoa acha qui um difunto é importante?
      Não,  Zé. O que eu estou dizendo é que você vai dar a ele o que temos de melhor,  estamos entendidos? O   povo é cheio da grana e o prefeito exige tratamento VIP. Vai gerar  muitos dividendos para todos.  Depois vem alguém ai para fazer o embelezamento da sepultura.  Dizem que eles têm dinheiro para queimar porco com nota de tostão. Então.... Não se esqueça,  senhor José. Trata o povo e o defunto com muita consideração!
     Se depender de mim o difunto  terá tudo de bom que tem aqui. Muita terra em cima do caixão. Depois,  esses rico que venha colocar os mármore e os enfeite que eles  gosta tanto. Se eles pode gastar com essa bobageira toda, num tenho nada pra falá.  Faço meu serviço,   abro o buraco, tafuio o home dentro e pronto. O resto é com eles.
     Estamos conversados !  Fique de prontidão!
     Zé coçou a cabeça. Colocou pá e picareta nas costas e foi lá, cumprir ordens.  
    Não sei pra quê tanta bobagem. Se o sujeito tá bem morrido, não carece cerimônia. Ninguém vai ser mais importante do outro lado  mesmo se  chegar de terno e gravata e cheio dos diploma.   Quanta bestagem.  E por acaso rico num vira  poeira? Credo!!
      Cavou a sepultura, comeu alguma coisa, tomou uma branquinha. Olhou para o buraco, uma belezura só. Esperou, esperou, esperou...
     O tempo passou, a noite chegou e nada do defunto. Zé acendeu as poucas luzes  do cemitério.Isso aqui num alumeia quase nada, coçou a cabeça e tomou outro gole.
     Assentou-se  à beira da cova, disposto a esperar. Ô difunto demorado sô! O povo divia de ter tacado esse homem em quarquer buraco por lá. É cada uma.... 
       Sete, oito,  e  nada do povo com o defunto.
       Vou  tomar outra  branquinha pra aquecer o peito. Só mais umazinha.. 
        Tomou um gole, dois, três. Esvaziou a garrafa. E de repente veio o sono. Tentou levantar, mas as pernas não ajudaram. Ah, já que o povo num chegou, custa nada dormir um soninho.Só um pouquinho. Aposto qui num vem ninguém mesmo. O povo isqueceu de trazê o home.
    Quase nove horas, chega o povo. Aliás, uma multidão ! Parecia uma procissão. Homens, mulheres, mocinhas elegantes, a turma dos puxa-sacos, os fazedores de discurso e um tanto de menino. Era gente que não acabava mais.  Caminham pelo cemitério, silêncio sepulcral. 
       Cadê o tal coveiro Zé que o prefeito prometeu que estaria esperando? O cemitério tá abandonado, portões abertos, gente. Credo!!! Que falta de compromisso e respeito. Isso aqui tá quase no  escuro, Ui!!!
        Vai ver que o coveiro  ficou com medo e deu no pé, disse outro.
        Foram andando, chegaram ao local. O que viram  foi só o monte de terra. É aqui; Botaram o caixão no chão e foram procurar o coveiro. 
       Andaram, gritaram, chamaram várias vezes e nada.
       O jeito vai ser bater  lá na casa do prefeito. Ele que se vire. Deixa o falecido aqui e vamos lá.
       - Mas isso não tá certo , não o precisa ir todo mundo. É gente demais para caminhar pela cidade, ponderou um. Vocês ficam aqui e eu vou. Deixar o caixão aqui sozinho é muita falta de consideração. E começou um bate-boca: vai, não vai, você quer é aparecer, você quer é fugir daqui, covarde, interesseiro.Eu que vou, eu quem sou o parente mas próximo. Não, sou eu. Você é só um dos mais afoitos puxa-sacos.  O tom da discussão aumentou, as mulheres começaram a chorar, as crianças abriram o berreiro. Foi tanto barulho  que o Zé acordou.Meio grogue, sujo de terra, na semi-escuridão, parecia alma de outro mundo. E a cabeça cheia de cachaça, nunca foi boa conselheira. Foi levantando, cambaleando  e gritando: 
            - Que ocês pensa que é,  pra vim aqui perturbá  o sono dos justo?
        Correu gente para tudo quanto é lado. Ninguém se lembrou do defunto. Era salve-se quem puder.
        - Dizem que ainda hoje tem gente correndo pra capital!