UMA VIZINHA DO BARULHO
Há um ditado popular que diz: “vizinho é o parente mais próximo”, mas, me ajuda aí, ô ditadozinho sem vergonha viu! A que mora aqui ao lado é do barulho, contando ninguém acredita do que é capaz. E o pior, com uma expressão que não se altera. Acho que se pudesse, espalharia bengaladas para todos os lados. Sempre que a contrariamos ou mesmo tentamos interromper seus incontáveis sermões, ai meu Deus! O mais interessante é que a figura não combina nem o pouco com as ações: pequena, tipo mignon, cabelo de melindrosa, sempre cheirando a brilhantina, pele de biscuit. Ela deve ter guardado em sua penteadeira potes e mais potes daqueles cremes que não existem mais. Adquiridos em mil novecentos e vovô rapazinho, é claro. E uma belíssima bengala saída direto do túnel do tempo. Mais parece coisa de museu.
Dona Fulana, que exige que a chamemos de madame, adora música. Eu também. E penso que ela tomou a si a responsabilidade de apurar o meu gosto musical. A cada manhã acordo com uma sonora ária de ópera. Aposto que ela possui um daqueles gramofones antiquíssimos, relíquia de museu onde existem coisas que não vemos mais em nenhum lugar. Às vezes sai um som meio arranhado, dói os ouvidos. Isso acontece bem cedo, muito antes do sol nascer. E dá-lhe O Barbeiro de Sevilha, Carmina Burana, Aída, Carmen, A Flauta Magica e Cavalleria Rusticana enfim, o que há de melhor no mundo musical. O problema é que não precisava ser quase de madrugada. Ela podia colaborar e deixar que eu ficasse nos braços de Morfeu por mais uma horinha só. Eu agradeceria penhoradamente. Não somente eu, mas metade do condomínio. Já pedimos reunião extraordinária, ameaçamos com pena de multa, gastamos todo o nosso latim, explicamos que as pessoas aqui trabalham e vão dormir muito tarde, que precisam das horas de sono e que ela deve respeitar a lei do silêncio. A única coisa que conseguimos foi ouvir outro sermão. Ficamos com cara de bobos. Os argumentos são os mais convincentes:
Estão reclamando da minha música, que é maravilhosa, mas como é que suportam essa cidade tão barulhenta? Mesmo com a janela fechada, escuto freada de carro, buzina, gente que passa pelo corredor falando na maior altura, o barulho das campainhas, sirene, ambulância, o “diabo a quatro”. E isso vocês bem sabem, a noite toda. Eu até hoje, nunca bati na porta de ninguém para reclamar. Sei que são as mazelas da cidade grande, que não podemos fazer nada. Escuto os filhos dos vizinhos gritando, arrastando os pés pelos corredores, o barulhinho chato desses joguinhos de celular e tento entender. Mas implicar com uma pessoa idosa é muito mais fácil. Velho aqui não tem direito, parece que está na hora extra! Vocês não respeitam o Estatuto. O idoso tem suas prerrogativas, tratem de cuidar da própria vida. São uns ignorantes, gente rude mesmo. Não tiveram uma boa formação musical. Demonstram que não aprenderam nada. Sou da época do canto orfeônico, do solfejo. Moças prendadas tinham boas maneiras, sabiam tocar piano e faziam bordados primorosos. E o francês então? Falávamos perfeitamente! As senhoras e senhoritas eram respeitadas. Homem de bem ao passar por uma delas, tirava o chapéu em sinal de respeito. Não nasci para conviver com esse tipo de “gentinha”. Passem muito bem e me esqueçam!
Bom, ela deve ter estudado em 1808, com os jesuítas. Continua vivendo por lá. Só pode. E pensando bem, acho que sou implicante mesmo. Até que a música é boa. O barulho da cidade está me estressando. Como sou intolerante!
Dia desses aconteceu o inusitado. Cheguei cansada, morrendo de calor. Abri todas as janelas, deitei-me no sofá e decidi ouvir um som. Estava bem distraída quando a campainha tocou. Não esperava ninguém, estranhei. Mais estranho ainda foi quando me deparei com a madame parada na minha porta, bengala em punho, cara de poucos amigos.
Escute aqui, minha filha. Não foi você que reclamou da minha música? Não estava lá com aqueles selvagens ameaçando com multa e outras coisas mais? E agora coloca esse som no último volume! Acha que eu sou obrigada a escutar o que você gosta? Vim aqui para exigir que você abaixe o som ou então, já que não sabe ser civilizada, desligue esse aparelho! Não me obrigue a escutar esse tum, tum, tum.
Mas não está tão alto assim, repliquei. E essa música é boa demais. Tão boa quanto as suas óperas. Ele é um dos melhores cantores das Gerais, viu!
Para que fui falar. Quanta infelicidade! Ela ficou ali na porta, xingando tanto, mas tanto, sapateou, esbravejou, brandiu a tal bengala. Dessa vez, pensei, ela quebra a minha cabeça.
Mil desculpas, senhora dona madame. Não queria incomodar, estou desligando o som agora, aliás, já estou de saída. Nem sei por que voltei para casa tão cedo. Prometo não mais incomodá-la. Fui. Lá fora tá um calor mais que agradável. Vou tomar um sol, é o melhor que posso fazer.
Voltei bem depressa para a rua. Para o caos, o calor e barulho da cidade. Mas, quanta paz...